segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Memórias de um Atlante - Capitulo I

A ganância insaciável é um dos tristes fenómenos que apressam a autodestruição do homem


Isaac Carmona
Textos Judaicos


CAPÍTULO I
O despertar de certas memórias


Os primeiros raios de sol do dia entram pela persiana rachada de seu quarto. É dia 21 de Junho, o solstício de Verão está ai e prestes a romper o seu doce sono e o de muitos outros para iniciarem o seu dia. De um sonho atribulado acorda, memórias de há muito foram-lhe aparecendo durante o seu descanso, coisas que nunca irá esquecer, que lhe ficaram cravadas para sempre e com as quais terá que lidar. É desses momentos que o ainda tenro sol de Banguecoque ilumina a face de Mikos, trazendo-o de volta para enfrentar mais um dia, mais um confronto com a eternidade.
“Continuo a ouvir dela ainda hoje…” pensou Mikos, “Parece que foi ainda ontem que tudo aconteceu e nada pude fazer para o evitar”. O seu despertador irradia uma música bem alta para que dê inicio ao seu ritual. Levanta-se e vai tomar um duche fresco pois o calor húmido e forte em breve irá se sentir trazendo consigo os aromas próprios ao homem. De seguida toma o pequeno-almoço, leite com cereais e um copo de sumo natural, um hábito que lhe perdura há muito, difícil de esquecer, de apagar e que sempre o acompanhou por onde tenha passado. Não que nunca o cumpra mas sempre que pode não falha. Pega nas chaves de casa, na sua carteira, passaporte e nos óculos de sol e olha para o espelho questionando “Será hoje que tudo isto termina?”
Saiu de casa e agora dirige-se para o aeroporto. Mikos vive entre países. Não tem casa própria, aproveitou para vir a Banguecoque, desfrutar de umas pequenas férias para sair do ritual de trabalho que se apoderou dele e não lhe dá tréguas. Tem amigos que tomam conta da sua casa como se fosse deles, amigos que por uma outra razão se encaixaram na sua vida e se juntaram a uma teia de amizade já muito comprida e muito desgastada. Mikos chama um táxi e pede para o levar ao aeroporto. De caminho continua a pensar nas imagens que viu no seu sonho, das memórias todas que isso lhe trouxe enquanto o taxista vai falando com ele e Mikos apenas acena com a cabeça mostrando um sorriso falso para sua contemplação. “Será que te teria salvado?” – pensa Mikos – “Será que seríamos felizes? Que saudades dos teus olhos azuis….”
“Chegamos senhor. A viagem fica por 500 Bahts!” – Diz-lhe o taxista. Mikos paga ao taxista – “Obrigado senhor! Quando voltar não se esqueça de avisar por correio electrónico ou por telefone. Virei logo busca-lo ao aeroporto”. Mikos esboça um sorriso e acena com a cabeça dizendo que sim. Prepara-se para voltar para Nova Iorque, tem assuntos lá a tratar, assuntos de cariz pessoal e profissional. Mikos é especialista em antiguidades, consegue ler línguas antigas e trabalha essencialmente na compra e venda de antiguidades. Os seus clientes são pessoas extremamente ricas e muito discretas, tudo o que negoceia é feito com a máxima discrição para que não chame a atenção dos media, coisa que lhe seria impensável. Neste momento o negócio que tem para fechar é sobre uma peça muito antiga, um vaso da antiga Grécia que contém um texto muito sensível, algo que uma cliente comprou e que pensa ser de grande interesse para Mikos e que lhe despertou interesse suficiente para interromper as suas férias em Banguecoque. Mikos acha que esta peça pode ser algo de muito valioso e não a quer perder de vista.
A viagem de regresso irá ser longa, 17 horas e como Mikos chegou cedo ao aeroporto, 3 horas antes do voo, aproveita para ir a um quiosque ver os jornais do dia, ver o que se passa no mundo. Os seus olhos deambulam pelos títulos dos principais jornais mundiais, “The Times”, “Der Spiegel”, “The Sun” entre outros. Todos com as mesmas noticiais que de há tanto se tornaram habituais: guerra, mortes, mudanças económicas que levam países e continentes a mudar rapidamente as suas políticas, fome e desgraça. “Tudo coisas habituais no homem” pensa ele. No meio deste cruzar de títulos vira a sua atenção para uma revista musical, “The Rocker Magazine”, uma revista americana sobre música rock, um estilo muito apreciado por Mikos. Não só o rock como a música em si, pois crê ele que é um meio de união entre culturas e que há muito vem criando pontes de câmbio cultural e social entre os vários povos permitindo criar novos sons, novas harmonias. Pega na revista, paga e ao sair do quiosque cruza olhares com uma mulher, que fala ao telemóvel, bonita, esguia, com ar de quem não dormiu muito nessa noite mas os seus olhos cativam-no de uma maneira que há muito não sentia. Ele escuta, por breves momentos, a sua conversa e percebe que tem sotaque americano.
Segue em direcção ao check-in, com a mulher seguindo-o de perto. Ao chegar ao check-in ela também permanece na fila e Mikos apercebe-se que também vai para Nova Iorque. “Quem será?” – pensa ele – “Qual será o seu nome?”. Há muito tempo que uma mulher não lhe despertava tanto interesse. Mikos não é um homem de grandes amores, ele é muito dado ao seu trabalho e como qualquer homem mantém um contacto regular com mulheres mas nunca se afeiçoando muito a nenhuma em particular. Apenas por uma ocasião teve uma paixão, aquele amor da sua vida, aquela que lhe punha o coração a pular, com um olhar, um toque suave na sua pele ou mesmo só pensar nela. Mas esse amor há muito que se foi e agora eis que uma estranha lhe despertou um interesse que parecia já esquecido.
Ambos embarcam para o avião e acabam por ficar sentados lado a lado. Ela não parece muita extrovertida o que de um certo modo revela uma sensualidade estranha. E como Mikos também não é muito dado a grandes conversas ambos acabam por não dizer nada. O capitão anuncia no altifalante que o voo com destino a Nova Iorque irá deslocar não tarda e Mikos contempla, pela janela do avião, o sol de Banguecoque por mais uns instantes. Ela, permanece calma, como alguém já muito habituado a viajar e apenas relaxa, coloca uma almofada para aconchegar a cabeça e fecha os olhos. Parece que se encontra num estado zen. Mikos faz o mesmo, é tempo de tentar descansar, a viagem é longa…
Passado algumas horas, Mikos acorda e para seu espanto a revista que tinha guardado para ir lendo no avião está a ser lida pela rapariga sensual e misteriosa que se encontra a seu lado. “Não se preocupe, eu devolvo-a no fim!” – diz a rapariga com um ar sério mas num tom irónico – “Estou a ler os restantes artigos, dos meus colegas.”, comenta ela. “Você é jornalista?” – pergunta Mikos. “Sou uma repórter freelancer, escrevo muitas peças sobre bandas musicais e estive ontem à noite num concerto a entrevistar uma banda rock que está a fazer um tour pela Ásia” – esboça um sorriso e levanta os seus olhos na direcção dos olhos de Mikos, olhos verdes cor de azeitona - “E você? Estava de férias em Banguecoque?” – Mikos cora, fica meio atrapalhado por contemplar o olhar penetrante daquela morena de lábios grossos e olhos castanhos-claros – “S.. S… Sim, pode-se dizer que sim. Estava a tirar uns dias fora do trabalho para sair da rotina e resolvi vir ter com uns amigos a Banguecoque” – rematando com um sorriso simples.
“Foi você que escreveu essa peça sobre a banda da capa, não? São eles que estão a fazer o tour pela Ásia.” – pergunta Mikos – “Sim, fui eu.” – Sorri em jeito de reconhecimento – “Venho a seguir a banda há já algum tempo e ontem foi o último concerto deles da tour e a banda convidou-me a assistir e aproveitei e tirei algumas fotos com eles. Foi uma noite comprida onde também pude estar com outros colegas e amigos que já não via há muito tempo.” – Mikos sorri, sente-se mais confiante, afinal aquela morena de ar frio e meio intimidante parece ser bem sociável e simpática – “Peço desculpa mas nota-se pelo seu ar de cansada.” – diz Mikos de uma forma simples – “Ah, não me diga que não estou apresentável?” – pergunta a rapariga com um ar muito sério. Mikos cora imenso, sente-se repentinamente cheio de calor e eis que a rapariga solta uma gargalhada e toca com a sua mão no braço dele – “Estou a brincar, não precisava ficar tão sério! Queria só ver a sua reacção. É claro que estou cansada mas valeu a pena rever velhos amigos de há muito e de pôr a conversa em dia pela noite fora” – diz a rapariga com um sorriso tão natural que Mikos não pode deixar de esboçar um pequeno brilho nos seus olhos com tamanha beleza.
“Como se chama?” – pergunta a repórter – “Mikos, o meu nome é Mikos”.
- O meu nome é Ava, Ava Campbell.
Ava e Mikos trocam um olhar profundo durante dois segundos e depois riem-se, em sintonia como se já conhecessem há muito.
- Gostei muito do seu artigo, Ava. Comprei a revista para me entreter por causa da banda e da entrevista que fez. Já venho ouvindo os álbuns deles há algum tempo.
Ava sorri, contempla mais uma vez os olhos de Mikos e cora.
- Muito obrigada, Mikos. Eu também gosto muito da banda. Estão a fazer um enorme furor pelo mundo inteiro e são umas pessoas fantásticas. Têm feito grandes espectáculos.
A conversa estende-se, falam sobre um pouco de tudo, do estado actual do mundo, dos lugares por onde Mikos já passou, da vida de Ava, que andou sempre em escolas diferentes até ter ido viver para Nova Iorque quando tinha 12 anos, com a família. Aos poucos e poucos quebraram-se as barreiras iniciais e em menos de nada pareciam dois conhecidos, dois grandes amigos que há muito não se viam e que sentiam uma atracção entre os dois. Após tanto tempo a conversar decidem descansar um pouco. Ainda faltam algumas horas para aterrar em Nova Iorque e a viagem deixa as suas marcas. Mikos e Ava sentem-se cansados mas contentes, acabaram de se conhecer e têm tanto em comum. Ava encosta-se para trás e fecha os seus olhos com a sua cabeça a descair para a direita, para o lado onde Mikos está sentado. Mikos relaxa, fecha os olhos e por breves momentos antes de adormecer relembra sentimentos há tanto esquecidos e pensa no quanto ela lhe faz lembrar alguém, “Ela lembra-me tanto de ti.”, deixando-se dormir de seguida.

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